quinta-feira, 27 de março de 2008
O Rio sob meus pés
Pular da Pedra da Gávea faz-nos sentir no céu, acho que deveria ser mesmo, eu estava sobrevoando a cidade mais maravilhosa do País. Era o Rio de Janeiro aos meus pés, eu estava acima do bem e do mal, podia ver coisas que muitos não conseguem. A vista voava longe e alcançava a praia de Copacabana, o Pão de Açúcar, viajava por Ipanema e Leblon e era sobrepujada pelo Dois Irmãos. Embaixo de mim, a desigualdade gritava no encontro entre os luxuosos prédios de São Conrado e os miseráveis barracos da Rocinha.
O que mais me alegrava, mesmo diante desse choque econômico, era que o mar é e sempre será democrático, acolhe a todos e molha e lava a alma de seus amantes. O mar também me amedrontava. E se o equipamento do parapente falhasse e eu caísse de uma altura daquelas? Seria o mar tão romântico comigo como com quem está na terra? Melhor não arriscar.
Melhor ainda parar de pensar nisso e apenas sentir o vento puro, gelado e sustentador de meu parapente. Esse vento que soprava sentido Barra da Tijuca, já tinha passado pela badalada Zona Sul e refrescado a fronte suada de algum trabalhador do movimentado centro do Rio de Janeiro.
Eu continuava sobrevoando os prédios luxuosos, dançando na tênue linha que os separava da pobreza da Rocinha. Aliás, era preferível cair no mar, caso fosse, do que me estatelar em meio a barracos. Se é para morrer, que seja com classe e um toque de Ulisses Guimarães.
Voltar à terra firme foi triste, queria brincar mais de ser pássaro, mas a batida seca de meu par de tênis puma velho na grama me despertou. Eu era terrestre novamente.
Hélio - Hélio |11:26 hs comentários[0].
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quarta-feira, 19 de março de 2008
Press F5, please
Juro que às vezes me sinto parado no tempo. Hoje um colega veio me dizer que achava um saco ter que conversar com os pais da namorada, almoçar com eles agora no domingo de Páscoa e fazer ?o social?. Discordei prontamente. Tem que ir sim, conversar, dar satisfação, agradar sogro e sogra e se comportar bem. Eu disse que ele estava namorando a família dela, não apenas a moça. É diferente do caso dele, homem. A moça sempre leva o namorado para o lado da família dela, e tem que ser assim.
Não que precise ser como quando minha mãe namorava meu pai no sofá da sala (sem beijos de língua, hein!) e 11 horas da noite minha tia avó passava para lembrá-la de que estava tarde para um rapaz estar na casa de uma moça. Será que é essa criação que me faz pensar assim hoje? Creio que sim, e adoro pensar que ainda preservo isso em mim. Minha mãe sempre diz: o mundo pode desabar, mudar, seja lá o que for, os valores continuam os mesmos. E precisam continuar.
Imagine se não houvesse o freio da culpa católica, se não houvesse as mães cuidadosas, os pais vigilantes e as tias avós caras-de-pau. Babilônia, Sodoma e Gomorra ficariam no chinelo! Sim à caretice. Sim ao almoço de domingo em família. Tem que ir pedir para namorar (não mais fazer a corte), para sair e para casar. Tem que dar satisfação.
Chamem minha postura de radical, ultrapassada ou desvairada, tanto faz, como comecei o texto, sinto-me parado no tempo. Ninguém confia mais, não se tem apreço, tudo é tão volúvel que parece vivermos em gigantes dunas de climas diferentes.
Não abro mão da cerimônia na casa dos outros, da educação, da sutileza e da política de boa vizinhança. Ninguém pode sair por aí fazendo o que bem entender, principalmente com a filha dos outros, no caso, de um militar. Os direitos são iguais, mas os deveres não, e não devem ser mesmo. Não podemos igualar homens e mulheres até nisso, seríamos uma sociedade sem divisões, padronizada, onde todos seriam, mais ainda do que hoje, iguais. A mulher tem que ser delicada e o homem forte. Forte para pedir em namoro e em casamento.
Depois disso, em um almoço com os colegas de trabalho, discutíamos as roupas das crianças de hoje em dia. Saltos, maquiagem, brilho, decotes sensuais, sessões em salões de beleza. Tudo isso foi parar em um universo onde antes o brilho era o labial (em forma de morango), a maquiagem era uma borboleta de tinta guache, o decote era do vestido da Barbie (e muito comportado), os saltos eram na piscina durante o verão e as sessões eram da tarde, assistindo Bingo, ou outro qualquer filme com animais em uma jornada alucinante atrás de seus donos.
Crianças estão virando pequenos adultos. Pergunto-me onde os pais delas foram educados, por quem e por que desse modo? Sou a favor do sapatinho de verniz estilo boneca, fita no cabelo, babadinhos coloridos e vestidinhos brancos e cor-de-rosa cheios de enfeites singelos, pueris, sempre.
Sinto-me velho escrevendo isso, ultrapassado mesmo. Ultrapassado por um furacão de informações muito novas e ainda não assimiladas, espero que nunca aceitas, apenas respeitadas, como todas devem ser. Vou me atualizar, já volto, diferente, ou não.
Hélio - Hélio |16:17 hs comentários[0].
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quarta-feira, 19 de março de 2008
QUEM É VOCÊ?
Confesso que andava meio desiludido do amor com o término de meu último relacionamento. Acho que é normal nos deixarmos levar pela tristeza de uma promessa não cumprida e generalizar esse momento ruim. Confesso, estava desiludido. Uma coisa que parecia tão certa e forte, tão verdadeira e completa, parecia. Acabou e meu coração pensou que esse tal de amor que todo mundo fala talvez seja uma alienação, segundo Adorno, ou uma histeria, segundo Freud. Mas não é.
Ontem de manhã aguardava o metrô na estação da Sé e ao meu lado, como que enviados justamente para destapar meus olhos e reabrir meu coração, parou um casal apaixonado. Ele deveria ter uns 60 anos e ela já beirava seus 55. Ao pararem do meu lado, ele me olhou e abraçou forte sua namorada, como que querendo dizer ?é minha, tira o olho?. Sim, foi com esse olhar de quem acredita que sua namorada é a mais linda do mundo que ele me olhou morrendo de ciúmes.
Segurei o riso e logo minha mente se deu conta do poder do amor. Ele existe, sim, ele existe. Amor no sentido de querer para sempre aquela pessoa, no sentido de não deixar a admiração morrer, de cultivar todos os dias um sentimento tão puro e nem sempre valorizado. Era visível a felicidade daquele casal, ainda enamorado depois de, provavelmente, décadas de convivência. Qual é o segredo de um amor assim? Sou capaz disso?
Acredito que sim. O que senti e acabou há pouco tempo foi uma semente disso, uma preparação para uma entrega maior que não conhece desconfiança, desrespeito e vários outros desvirtuamentos de valores. Aquele casal me provou isso, iluminou aquela parte do cérebro da gente onde fica escondido o lúdico, o sonho, a magia, coisas relegadas em tempos de capitalismo, disputa, ódio e subserviência.
Ele a abraçava sempre como se estivesse acabado de reencontrá-la após um longo período de espera e separação. Pude ver o sentimento, sim, ver, que ele nutria por ela, sempre correspondido. Às vezes os cinco minutos de espera pelo próximo trem podem mudar seu dia, e nesse caso mudaram. A vida ficou mais colorida, voltei a ter meus sonhos novelescos de amor e continuo, mesmo depois de um período de baixa confiança, acreditando no poder do amor. Amor sublime, amor puro, simplesmente amor.
No rosto daquela mulher era latente a felicidade de sentir o calor de seu amado lhe acolhendo em seus braços. Um brilho no olhar e nem uma palavra a mais, apenas esse brilho pôde traduzir o sentimento dela. E conseguiu. Era contagiante a paixão, o fogo (bem comportado, estamos falando da estação de metrô mais movimentada do País) dos dois. Foi lindo vê-los, foi maravilhoso observá-los e sublime traduzi-los como lição de vida.
Adoro ficar observando as pessoas, sempre gostei. Um dos meus programas preferidos é sentar em uma calçada e passar tempos somente a olhar quem passa, ficar imaginando quais histórias tem, de onde vem, para onde vai, o que sente, pensa, come, odeia. O ser humano é fascinante, ele só se torna chato quando não estamos abertos a tirar desse tipo de experiência, que acabo de narrar, algo de proveitoso para nossas vidas. Somos o outro, eu sou o outro, somos todos um só.
Humanos são iguais, só mudam de endereço, como os problemas familiares, as discussões de casal e os tapetes de ?Welcome? na porta de entrada das casas. Você já tentou fazer essa experiência? Já dedicou seu tempo em se distrair nos outros para saber quem você é? Essa mistura de antropologia, filosofia, psicologia e até psicopatia é deliciosa, valiosa. Em São Paulo ainda mais, dado o tamanho da população.
Decidi me abrir para tudo e todos, vivenciar, experienciar, testar, conhecer, errar, acertar e sempre observar. Creio que se todo mundo dedicasse uma hora de seu dia observando os outros, todos seriam pessoas melhores porque poderiam ver que, na verdade, somos todos tão efêmeros quanto os personagens que muitos montamos para sobreviver nesse planeta à beira de um colapso. Quem é você?
Hélio - Hélio |15:56 hs comentários[0].
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quarta-feira, 12 de março de 2008
Rara e fácil
"A bondade exige
A atenção extrema
Em se distrair
Nos outros."
Fabricio Carpinejar
Bondade, uma virtude tão rara nos dias de hoje que nem parece ser tão fácil de ser exercitada. É quase impossível, para aqueles que querem ter uma boa qualidade de vida que integre felicidade e bem-estar, não prestar atenção no outro, não ouvi-lo, ignorá-lo como se esse outro não fizesse parte de mim. Como peças integrantes do jogo da vida, todos somos jogadores, e essa partida fica muito mais fácil quando há união por meio da bondade.
Mas o que é ser bom? Como ser bom? Esbarramos aí nos valiosos conceitos de moral e ética. Em cada lugar do mundo a bondade tem um significado. Nos países muçulmanos ela se traduz pelo soberbo sustento de várias esposas de um mesmo homem. No Vaticano ela é uma porção de moedas de ouro doada à Santa Igreja. Na miserável África, bondade é dar a um faminto nem que seja meio pão amanhecido e seco. E no Brasil? Quem é bom aqui?
Ousaria dizer que os bons aqui são aqueles que acordam todos os dias, entram em trens e ônibus lotados de outros bons brasileiros, demoram até quatro horas para chegar a seu local de trabalho e nunca perdem o sorriso, o bom-humor e a vontade de continuar construindo suas vidas de forma digna e honesta, mesmo que de modo sofrido. A bondade deles consiste em manter funcionando um sistema opressor dos mais fracos, muitas vezes eles mesmos, sem se deixarem cair em atividades marginais que desviam o caráter e a postura.
Bondade não é só seguir preceitos cristãos dominantes em nosso País. Ela pode ser um minuto de conversa com um morador de rua, um sorriso sincero para uma criança abandonada ou um copo de leite para um carroceiro que ganha sua vida juntando os restos das vidas de outras pessoas. Todos eles são o outro, todos eles somos nós, todos eles são eu, você. Se o sol nasce para todos e a sombra apenas para alguns, bondade pode ser um imenso e fresco toldo capaz de abrigar todos os tipos de seres humanos, com a única condição de que sejam humanos, como você e eu.
Eu acredito na bondade e vou além ao dizer que ninguém precisa ser pregado em uma cruz ou passar fome por dias para ser considerado um ser bom, preocupado em se distrair nos outros. É necessário que haja, sim, uma preocupação com nossos pares, com nossos iguais, mas sempre mantendo o bom senso de não se distrair de si mesmo e acabar sendo mais um necessitado da leve mão da bondade.
Imperialismo, cristianismo, capitalismo e até mesmo socialismo não são fórmulas de como o ser humano deve ser para criar uma sociedade mais humana, e bondosa, por conseguinte. Todos eles são teorias, sonhos, utopias políticas que deveriam unir suas bondosas idéias para criar um sistema único vigente no mundo atual: o humanismo. Esse humanismo não conhece cor, credo, classe social ou opção sexual. Ele sabe apenas o que é bondade e se coloca sempre disposto a se distrair nos outros.
Hélio - Hélio |18:10 hs comentários[0].
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quarta-feira, 12 de março de 2008
A felicidade é uma sensação?
Felicidade é uma filosofia de vida, uma questão de escolha, algo bem maior que uma sensação. Até mesmo as situações ruins apresentam ao ser humano duas oportunidades: a de sentar e chorar, e a de levantar com um belo sorriso para dizer que aprendeu a lição e vai continuar rindo, feliz, mesmo que a diversão venha da própria desgraça, e não da alheia, como é mais comum.
Decidi há tempos ser feliz, não apenas estar. Às vezes me pergunto por que tantas pessoas fazem questão de obstruir sua felicidade. Pessoas de posse mesmo, fortes candidatas ao encantamento que a tranqüilidade material pode trazer. Mas elas não são felizes. Por quê? Acho que ora por esquecerem o quê desperta a felicidade, ora por não fazerem questão de perder seu precioso tempo com coisas para elas bobas como um belo pôr-do-sol.
Feliz de verdade para mim é quem se compromete a equilibrar os setores de sua vida, colocando-os sempre embaixo do guarda-chuva da beleza e leveza de um sorriso. Se for amarelo, que seja de tabaco, o importante é que seja sincero.
Todo mundo tem uma receita para ser feliz, eu acredito mais em auto conhecimento, em atitudes positivas. Momentos tristes sempre existirão para todos. Para mim, são a antítese daquilo que quero para minha vida, são valiosos exemplos de como ela será se eu não for, e não apenas estiver, feliz.
Hélio - Hélio |17:08 hs comentários[0].
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terça-feira, 11 de dezembro de 2007
Meus amigos
Para mim, meus amigos não têm raça, não têm credo e nem classe social.
Meus amigos são alegres e contagiantes.
Quando estão tristes, logo buscam a ajuda uns dos outros e tudo se resolve.
Meus amigos se apóiam, se entendem e se completam.
Gostamos muito de nós juntos, mesmo quando estamos discutindo fervorosamente.
Meus amigos falam o tempo todo, sobre tudo.
Eles não têm medo de parecerem ridículos quando o que está em jogo é se divertir e conquistar o sorriso de alguém.
Meus amigos falam alto, riem alto, e muito, sempre.
Não nos importamos com nomes, sobrenomes ou posses.
Meus amigos se gostam porque gostam da personalidade um do outro.
Somos sempre sinceros, mesmo que isso signifique a cara feia de um de nós.
Meus amigos são fortes, trabalhadores e têm a consciência de que na vida nada se ganha de mão beijada.
Estamos sempre batalhando, correndo atrás de nossos sonhos, buscando o apoio mútuo a todo o momento.
Meus amigos tiram sarro um do outro sempre francamente, dando a oportunidade do alvo rir de sua própria desgraça.
Eles são verdadeiros, companheiros, sinceros e a favor da felicidade.
Meus amigos são ótimos, me entendem, me corrigem e me deixam confiante.
Por isso eles são os meus amigos, isso me deixa muito feliz.
Ah sim, nós também adoramos Gipsy Kings, dançamos e gritamos em cima de bancos em churrascos privados.
Hélio - Hélio |14:05 hs comentários[0].
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segunda-feira, 3 de dezembro de 2007
A flor e a formiga
Uma formiguinha andava tranqüilamente pela floresta em que habitava desde quando era muito novinha. Sempre via seus familiares devorando delicadas flores e seus caules com um apetite imenso, felizes em destruir tudo por onde passavam. Mas essa formiguinha não gostava disso, não queria destruir aquele esplendor de cor que era uma flor. Ela queria se aproximar das flores para poder realizar seu grande sonho de ver do alto das plantas o mundo que a rodeava.
Foi quando um dia, caminhando solitária pela floresta, ela se deparou com uma flor triste, de pétalas murchas e lágrimas nos olhos. Decidiu então descobrir qual era a causa de tanta tristeza, sentia vontade de ser amiga daquela delicada flor.
- O que houve, querida beleza? ? questionou a formiguinha.
- Saia! Afaste-se de mim, bicho cruel. Já sofri demais com seus familiares, eles arrancaram minhas antigas pétalas e me deixaram nesse estado. Não confio em formigas, elas são todas cruéis e só pensam nelas mesmas enquanto nos devoram.
Triste por saber que não seria fácil convencer aquela sofrida flor de que era diferente, a formiguinha mesmo assim não desistiu e se aproximou ainda mais do frágil caule da planta.
- Saia! Saia! Não vou servir de alimento para uma formiga miserável! Quem dera Deus tivesse me dado pés para poder te esmagar, mãos para lhe atirar um pedaço de pau ou veneno para te espantar para o longe. ? bradava a flor. Decidida a buscar sua felicidade no topo da planta, a formiguinha redargüiu:
- Não temas, sou uma formiga diferente. Alimento-me apenas de folhas secas que suas irmãs derramam ao solo, sou inofensiva. Não faz parte de mim machucar coisas tão lindas criadas por Deus, meu arrependimento seria fatal. Não suportaria ver uma flor tão singela chorando por minha causa. Entendo que minha família já fez muito mal a sua, acho mesmo que até a você, mas olhe, estou aqui há quase uma tarde e tudo que fiz foi tentar me aproximar de você. Não seja relutante, não lhe quero mal.
Desconfiada, a flor abaixou suas pétalas até alcançar a formiguinha, olhou dentro dos grandes olhos do pequeno animal e viu dentro deles um brilho incomum, raro, quase extinto naquela floresta tão selvagem. Como ainda estava muito machucada pelos ataques anteriores de outras formigas, manteve-se firme na decisão de continuar com medo e desconfiada da formiguinha.
- Não vejo motivo para confiar em você, me parece apenas mais uma dessas devoradoras de caules, mais uma que me fará sofrer como todas as outras de sua espécie que por aqui passaram ? disse em tom arrogante a flor.
- Entendo, em vários caminhos pelos quais passei sempre tentei convencer as belas flores de que eu era uma formiguinha amiga, sonhadora, pura e sem vontade de fazer mal a vocês. Nunca consegui, não é nada fácil, mas vou continuar tentando. Desde que me deparei com suas pétalas, desde que percebi a força de suas raízes tive certeza que você é a flor certa para viver do meu lado. Sonho em morar em lindas pétalas, como as suas, vendo ao longe, com a tranqüilidade de quem se sente protegido e saberá proteger. Já andei muito por esses vales, montanhas e até pelo cerrado, nunca vi uma flor tão bela.
Vendo que a formiguinha acabara de falar, a flor questionou:
- Que garantias tenho de que você não irá me morder toda, me machucando mais ainda?
- Tens a maior de todas: minha consciência. Linda flor, sou apenas uma formiguinha, não tenho a bela juba do leão, não possuo asas como os pássaros e nem consigo ficar bela como vocês. Formigas estão sempre dispostas a trabalhar, construir seus sólidos formigueiros e viver em paz, armazenando suas folhas para o inverno. Não sou uma formiga caçadora, cruel, egoísta. Vivemos na mesma floresta, se te machucar, você machucará outro, que machucará outro e assim darei início a uma sucessão de dor e lágrimas. Sou apenas uma simples formiguinha, não tenho tempo e habilidade o suficiente para mentir, enganar e perder tempo com o que não me interessa. Meu sonho é subir calmamente pelo seu caule e chegar até suas pétalas para avistar a floresta daí de cima. Guio minha consciência por esse objetivo, meus desejos são relacionados somente com ele.
- Mas formigas têm instinto destrutivo, gostam de comer as plantas, argumentou a flor.
- Nem sempre. A vida de cada uma de nós é diferente, passamos por fases diferentes. Meu formigueiro sempre foi repleto de carinho e alegria. Passamos por momentos ruins, como quando a chuva destruiu nossa casa, mas eles serviram apenas para nos fazer ainda mais fortes, mais decididas, unidas. Posso lhe parecer mais uma devoradora de flores, talvez até uma formiguinha esperta que inventou esse sonho para poder te machucar, mas garanto que não. Preciso de um voto de confiança seu, uma chance de te provar que nem todas as formigas são iguais e que ainda existe bondade nessa selva tão cruel.
- O que recebo em troca? ? questionou a flor.
- Uma companhia, proteção, o fim da solidão que te deixa de pétalas murchas, alguém para conversar durante as noites frias da floresta. Ganhará uma formiguinha disposta a sempre te ouvir, te agradar e te fazer sorrir. Em troca de meu repouso sobre suas pétalas, te ofereço amor puro, descompromissado, sólido e confiável. Você foi eleita por mim como a mais bela flor da floresta, por você sou capaz de enfrentar todos os outros animais em nome de sua segurança e sono tranqüilo.
Com lágrimas nos olhos, a flor não pôde deixar de se sentir lisonjeada. Recompôs-se e racionalmente questionou:
- O quê te fez me olhar assim?
- Meus olhos cansados de ver coisas horríveis enxergaram em você a pureza e a sinceridade. Não me interessam as enormes rosas vermelhas, sedutoras, imperativas. Gosto de conquistar aquilo que me completa, algo que transcende as cores das pétalas e chega até o coração. Fique certa de que essa minha escolha não é leviana e impensada. Eu realmente quero morar sobre suas pétalas.
A flor olhou novamente dentro dos olhos da formiguinha, olhou ao seu redor e ouviu todas as suas amigas plantas dizendo que apenas ela não via como era especial esse pedido da formiguinha. Pensou, consultou algumas amigas flores vizinhas suas e deu sua resposta:
- Pois bem, suba. Serei seu porto seguro e você será o meu. Pensando bem, tenho certeza que sua companhia me será muito valiosa e agradável. Vivamos juntas, então.
- Maravilha! Mal posso acreditar. Mas como se convenceu de que eu não lhe quero mal? ? perguntou afoita a formiguinha.
- Minha pequenina, você já está aqui há quase um dia ao meu lado tentando me convencer a amolecer meu coração para você. Se realmente quisesse me devorar, já o teria feito há muito. Vamos, suba e viva comigo o lado leve da vida. Esqueçamos nossas diferenças porque temos algo muito maior a alcançar.

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